domingo, agosto 19, 2012

Tarifas planas para o transporte público urbano? Notas de leitura

Numa conferência em que tive oportunidade de participar recentemente na Uberlândia, Brasil, fui confrontado com a informação de que, de um modo geral, nas cidades do Brasil são usadas tarifas únicas no transporte público rodoviário urbano tendo, depois, tido oportunidade de vivenciar a situação no local. Quem tratou esse assunto na dita conferência foi Geraldo Alves Souza, geógrafo e professor da Universidade Federal de Manaus, que lhe atribui uma conotação bastante negativa.
No dizer do académico que invoco, contra a ideia comumente aceite de que “a adoção de um único valor de tarifa para o transporte coletivo […] seria uma forma de promover a justiça social”, a partir da invocação do caso da cidade de Manaus, no Amazonas, ele vê nessa política um modo de, “ao mesmo tempo em que expressa o pouco esforço do poder público na gestão e aprimoramento do sistema de transporte coletivo urbano”, uma forma do poder político ir ao encontro do “interesse das elites políticas e econômicas deste país para consolidar um padrão de distribuição espacial da população que relega as pessoas de baixa renda à periferia das grandes cidades”. Cito, a propósito, passagens do resumo de uma comunicação produzida sobre a matéria pelo autor identificado, a que tive acesso mais tarde, gentilmente cedida pelo próprio [Souza, Geraldo Alves (2010), “Transporte Púbico a Preço único: reforçando as Desigualdades Sociais”, Conferência PLURIS 2010, Universidade do Algarve, Faro].  
Em grandes linhas, a tese defendida por Geraldo Alves Souza é a seguinte: contrariamente à ideia comumente aceite no Brasil de que a adoção de um valor único para a tarifa do transporte coletivo urbano teria por finalidade promover a justiça social - porque, tradicionalmente, a periferia tem sido ocupada pela população de baixo rendimento e tarifas diferenciadas de acordo com a distância das viagens elevariam as despesas com transportes de uma população já socialmente penalizada -, esta prática seria “uma forma ardilosa de levar a população pobre para a periferia da cidade e, ao livrar-se dela, a sociedade burguesa evita[ria] que os recursos destinados às classes média e alta sejam[fossem] divididos com esta população. Esta medida permite[iria] também que glebas de terra de excelente padrão e localização não sejam utilizadas para assentar essa população, permanecendo à disposição do capital imobiliário para empreendimentos de médio e alto padrões” (Souza, 2010, p. 2).
Adiantando argumentos, defende Geraldo Alves Souza (2010, p. 2) que “o ato de estabelecer residências em locais periféricos exerce forte impacto sobre a qualidade de vida dessa população, conforme apontado por Oliveira (2006), para quem o espaço socialmente produzido condiciona as relações entre os homens e, dependendo do lugar onde o indivíduo resida, trabalhe ou circule, esse homem pode ser mais ou menos cidadão e pode estar mais ou menos submetido a condições de violência. Assim, morar na periferia não representa apenas um tempo a mais nas viagens diárias mas a redução das oportunidades de realizações profissionais e pessoais”.
Em abono desta tese são produzidos argumentos vários ao longo do todo o texto que invoco e, como mencionado, como estudo de caso é tratada a situação da cidade de Manaus, uma urbe que apresentou um acentuado crescimento populacional nas últimas décadas, à semelhança do que ocorreu no restante país, e que se expandiu horizontalmente para norte “em um ritmo bem acima do necessário para abrigar a sua população” (Souza, 2010, p. 7).
A propósito do que sucedeu com esta cidade, no quadro da explicitação da problemática que versa e da tese que defende, acrescenta que “Uma das consequências desta dispersão da população é o exagerado aumento nas distâncias a serem vencidas pela população […] agravada pela escassez de vias arteriais com boa capacidade para receber o fluxo de veículos e ser utilizadas por linhas de ônibus. Em função disso, as linhas de ônibus são obrigadas a percorrer trechos com lentidão e congestionamentos de trânsito, com viagens que chegam a ultrapassar duas horas de duração em horários de picos” (Souza, 2010, p. 8).
A tese é interessante e a ilustração que dela se faz vai buscar bons argumentos à situação atualmente vivida no Brasil, de um modo geral, como pude perceber olhando a realidade de cidades como Uberlândia e Joinville, e, particularmente, ao caso de Manaus, que o autor tomou para estudo de caso. Pese isso, haverá que dizer que a realidade, olhada de fora do Brasil, se configura mais complexa do que a considerada pelo autor cujo trabalho invoco e nem todos os argumentos chamados à colação por Geraldo Alves Souza se configurarão igualmente pertinentes ou terão invocação legítima.
Em boa verdade, como fiz questão de lhe transmitir em breve comentário que lhe fiz chegar entretanto por correio eletrónico, a problemática afigura-se-me mais complexa do que aquilo que é por ele considerado, e não terá resposta única no Brasil e na Europa, por exemplo. No caso concreto de Portugal e da Europa, em geral, é sabido que a residência na periferia da cidade é escolhida muitas vezes por grupos com maior poder económico, que anseiam aceder a mais espaço, casas individualizadas e a ambientes mais tranquilos, suportados no transporte automóvel. Pelo contrário, os centros das cidades resultam ocupados pelos estratos mais pobres da população e, lamentavelmente, tendem a desagradar-se.
Por outro lado, levantando muitos problemas existentes na gestão do espaço urbano e do transporte em meio urbano, o texto de Geraldo Alves Souza, a meu ver, perde foco e consistência por trazer para a reflexão demasiados tópicos, sendo que alguns deles têm resposta autónoma da problemática do transporte público, como sejam o desenho e expressão espacial da cidade, que “facilmente” pode ser regulada pelos planos diretores e urbanísticos municipais, a especulação imobiliária, que também pode encontrar sede de regulação no quadro dos referidos instrumentos de planeamento municipal, entre outros, e a opção pela existência de um ou mais centros de serviços, por exemplo. Acresce que em Portugal e na Europa o emprego industrial está também crescentemente localizado na periferia urbana. Mais se pode dizer, não resultando daí diminuída a importância do contributo de Geraldo Alves Souza para o tratamento de uma tema de tão elevada sensibilidade social e pertinência socioeconómica.

J. Cadima Ribeiro

Referência: Souza, Geraldo Alves (2010), “Transporte Púbico a Preço único: Reforçando as Desigualdades Sociais”, Conferência PLURIS 2010, Universidade do Algarve, Faro.

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